quarta-feira, 17 de outubro de 2007



Histórias do Tenente Adauto 4

A história do cano furado

Após o Golpe Militar de 1964, o Tenente Adauto, nesse tempo com a patente de Sargento, foi transferido do Quartel General de Fortaleza, que se localizava no Forte, e passou a servir no antigo CPOR – Centro Preparatório de Oficiais da Reserva, na avenida Bezerra de Menezes. Naquela guarnição militar existiam um colégio infantil para a educação dos filhos de sargentos, cabos e soldados, uma padaria, um refeitório, alojamentos para os alunos militares, salas de aula e um parque esportivo. Ali, alguns de nós estudamos todo o primário. A educação na época, era de boa qualidade, com professoras dedicadas e exigentes, porém, toda ela direcionada para o militarismo. Formávamos como soldados antes de entrar em sala de aula e éramos obrigados a saber todos os cânticos militares. Assim, aprendíamos não somente o Hino Nacional, como os hinos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. De quebra ainda nos ensinavam os hinos das três armas do Exército: Infantaria, Artilharia e Intendência, além de outros hinos como o da Independência e da Bandeira.

O Sargento Adauto era da arma da Intendência e cuidava como ninguém, do almoxarifado do Quartel. Sabia detalhadamente de tudo que entrava e saía naquele galpão, desde material de construção à uma simples caneta. Graças a intensa amizade que amealhou conseguiu erguer aos poucos, uma casa em um terreno adquirido nas proximidades do quartel, no Parque Araxá. A construção se dava, geralmente nos finais de semana, quando convidava alguns praças que, entre um gole e outro de cachaça, com tira gosto de panelada, iam subindo as paredes da casa.

Conta-se que nessa época, haviam alguns canos esquecidos no almoxarifado do CPOR, e como já estavam ali há um bom tempo, sem serventia e ocupando "inutilmente" espaços no salão, o Sargento Adauto resolveu pedí-los ao Comandante. Com trânsito fácil entre os oficiais, foi logo à sala do Comandante e solicitou:

- Comandante, o Sr. me arranja uns canos velhos furados que estão só fazendo entulho lá no almoxarifado?

O Comandante, sem pestanejar, imaginando inservíveis tais materiais, respondeu afirmativamente ao pedido do eficiente Sargento, afinal de que serviriam ao quartel alguns canos furados?

Na semana seguinte ao fato, adentrou à sala do Comandante, bastante contrariado, um Capitão que era engenheiro do quartel, indagando de seu superior o motivo pelo qual havia cedido dezenas de canos ao Sargento Adauto, já que estavam em bom estado de conservação. O superior então falou que o sargento havia lhe pedido tais canos e que dissera que eram furados, foi quando o Capitão retrucou:

- Mas Comandante, qual o cano que não é furado, nas extremidades?

O Comandante pensou na artimanha do seu pupilo e sorriu, dizendo:

- Capitão, deixa o Sargento construir a casa dele.




O caso do Capelão Militar e do soldado

Adauto era um exímio datilógrafo, operava como ninguém o Telex do quartel e também era expert em Código Morse, especialidade em que recebeu duas medalhas de honra ao mérito do Exército americano, na Segunda Guerra Mundial, por salvar e direcionar dois navios aliados que estavam a deriva no litoral brasileiro, perto de Natal, no Rio Grande do Norte. Quando se necessitava de pressa no encaminhamento de algum expediente reservado, os oficiais recorriam ao Sargento Adauto, pela sua praticidade e eficiência no manejo de uma máquina de escrever. Assim, obteve notoriedade, respeito e estima dos colegas, alunos e oficiais do CPOR.

Versado nas palavras, o Sargento Adauto era o redator preferido do Comandante do quartel, que se deliciava com suas poesias e versos matutos. Um de seus poemas caipiras, o Zé Corneteiro, era declamado religiosamente em toda festa de Natal que se promovia no quartel. Falava, em linguagem bem dramática e chorosa, da sina de um soldado que era corneteiro do exército e, convocado para a guerra, faleceu em combate. O Comandante do CPOR fazia questão de que fosse lida pelo próprio Sargento Adauto, que arrancava lágrimas do público ao declamar com sua voz suave e melosa as estrofes do poema. Ao final, soluços e aplausos se misturavam à ovação da platéia.

Contava que certa vez, ocorreu um escândalo de grandes proporções para a caserna, com conseqüências inimagináveis ao conceito da entidade militar, se não fosse tratado com muito traquejo no uso do vernáculo, ao se proceder ao anúncio da decisão final do fato.
Ocorre que o Capelão da entidade militar, pessoa a quem se confiava o resguardo espiritual da corporação, havia sido flagrado em ato sexual com um soldado que servia no quartel. Ora, eram os tempos difíceis da repressão, onde nos militares e na Igreja Católica se depositavam os mais elevados anseios de proteção da ordem e da moral dos brasileiros, respectivamente. Imaginar-se sexo, ainda mais homossexual entre representantes destas duas instituições, era desmoralizar ao extremo o regime castrense e a religiosidade fervorosa da época.

No caso prático, a decisão já estava tomada: prisão do soldado e posterior expulsão das fileiras da corporação militar, no caso do religioso, encaminhamento à sua congregação de origem, ficando ao critério do Bispo, a punição que lhe adequasse. Porém, haveria que se proceder, no âmbito militar, a publicação de um ato em que se anunciasse a decisão da expulsão do soldado, de acordo com o princípio da publicidade que se opera nas entidades governamentais.

Eis aí o grande engodo ao qual se encontrava o Comandante da corporação: como anunciar a punição deste desvio de conduta, considerado tão degradante para a tropa? Que palavras seriam usadas no expediente protocolar, que pudessem amenizar o caso ou desviar seu entendimento, a fim de não se macular a imagem de entes tão respeitosos?

A única pessoa a quem o Comandante confiava os expedientes mais insólitos, por possuir a intimidade com a língua pátria, era o Sargento Adauto. Incontinenti, solicitou a presença do subordinado a seu gabinete expondo-lhe a situação vexatória e alertando-lhe do alto sigilo que deveria manter sobre o fato. O Sargento pensou e concordou com o desafio.

No dia seguinte ao encontro dos dois militares, o flanelógrafo do quartel anunciava a seguinte decisão em forma de Portaria, que no seu bojo assim discorria:

Portaria nº X
Expulso das fileiras do Exército Brasileiro, o soldado Francisco Ferreira do Nascimento, por deixar penetrar em seu círculo militar, um membro do Clero.

Autor: Nivaldo Barros da Costa – filho nº 7 do Tenente Adauto

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